Alterações efetuadas pelo Decreto-Lei nº 84/2021 aos Direitos do Consumidor

Os direitos dos consumidores encontram-se consagrados no artigo 60º da Constituição da República Portuguesa e na Lei nº 24/96, de 31 de julho, que estabelece o regime jurídico aplicável à defesa dos consumidores e que consagra, no seu artigo 4º, o direito à qualidade dos bens e serviços.

No sentido de transposição das Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770 para a ordem jurídica interna, no dia 18 de outubro de 2021, com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2022, foi publicado o Decreto-Lei nº 84/2021, que vem reforçar os direitos dos consumidores na compra e venda de bens móveis, de bens imóveis, de conteúdos e serviços digitais.

O referido diploma visou transpor para a ordem jurídica portuguesa duas Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho:

  • Diretiva (UE) 2019/771, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens;
  • Diretiva (UE) 2019/770, que fornece regras quanto ao fornecimento de serviços e conteúdos digitais.

Desde logo, e por se afigurar crucial compreender a partir de que momento se aplicam as alterações trazidas pelo Decreto-Lei que nos cumpre analisar, esclarecemos que serão aplicáveis:

  • (i) Aos contratos de compra e venda de bens móveis e de bens imóveis celebrados a partir de dia 01/01/2022, inclusive;
  • (ii) Aos contratos de fornecimento de conteúdos digitais celebrados a partir de dia 01/01/2022, inclusive;
  • (iii) Aos contratos por tempo indeterminado, ou a termo certo, que prevejam o fornecimento contínuo ou de uma série de atos individuais de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais, celebrados antes da sua entrada em vigor, mas apenas no que respeita aos conteúdos ou serviços digitais que sejam fornecidos a partir do dia 01/01/2022, inclusive.

Quase 20 anos após a publicação da Diretiva 1999/44/CE, que veio consagrar um quadro legal de harmonização mínima quanto à proteção dos direitos do consumidor na União Europeia, a Comissão Europeia apresentou, em maio de 2015, a Estratégia para o Mercado Único Digital, tendo em vista reforçar a proteção do consumidor nesta nova Era do Mercado Competitivo e Digital.

Ora, é nesse exato contexto, que surge a Diretiva (UE) 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, que vem alterar o Regulamento (UE) 2017/2394 e a Diretiva 2009/22/CE, revogando, ainda, a Diretiva 1999/44/CE.

Falamos de um diploma que veio estabelecer regras comuns quanto a certos requisitos relativos aos contratos de compra e venda celebrados entre o profissional e o consumidor, contendo, especialmente, regras quanto à conformidade dos bens com o contrato, aos meios de ressarcimento em caso de falta de conformidade, às modalidades para o exercício desses meios e às garantias comerciais, incluindo novas realidades, como é o caso dos contratos de compra e venda de bens com elementos digitais incorporados.

Por sua vez, e no que respeita à Diretiva (UE) 2019/770, esta emergiu como resposta, por um lado, a um quadro de vazio legal a nível europeu, no que respeita à consagração de direitos dos consumidores em caso de não fornecimento ou não conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, e, por outro, à necessidade de potenciar as vantagens do crescimento do comércio eletrónico para o mercado interno.

Em concreto, os contratos abrangidos pela referida Diretiva são aqueles que:

  • (i) estipulem um único ato de fornecimento;
  • (ii) estipulem uma série de atos individuais de fornecimento
  • (iii) estipulem um fornecimento contínuo.

No fundo, este diploma vem assegurar que, o consumidor que faculte os seus dados pessoais para usufruir de um conteúdo ou serviço digital, passe a estar protegido por um conjunto de direitos, caso ocorra, ou não, o fornecimento dos mesmos ou falta de conformidade.

E, assente num princípio de harmonização total, a Diretiva (UE) 2019/770 estabelece regras quanto ao fornecimento dos conteúdos e serviços digitais, prevendo o direito à resolução do contrato pelo consumidor em caso de não fornecimento, de acordo com determinadas regras, bem como em caso de falta de conformidade com determinados requisitos subjetivos e objetivos.

Face ao exposto, e como já tivemos oportunidade de dar nota, o Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro,  transpõe as referidas diretivas, reservando:

  • Capítulo II para o regime aplicável à compra e venda de bens;
  • Capítulo III para o regime aplicável ao fornecimento de conteúdos e serviços digitais.
  • Capítulo IV para disposições comuns.

Primeiramente, no que respeita à compra e venda de bens, o presente decreto-lei vem, desde logo, ampliar a noção de “bens”, abrangendo os bens de consumo que incorporem ou estejam interligados com elementos digitais.

Partindo de um princípio de conformidade dos bens com um conjunto de requisitos subjetivos e objetivos, estabelece o diploma que o profissional se encontra obrigado a entregar ao consumidor bens que cumpram todos os requisitos referidos, sob pena de os bens não serem considerados conformes.

Ora, perante uma falta de conformidade, prevê-se uma responsabilidade do profissional, desde que tal falta se manifeste num prazo de três anos, e que se considera existente à data da entrega do bem, se for manifestada durante os primeiros dois anos.

 Dado que o presente decreto-lei vem transpor, quanto a este assunto, a Diretiva (UE) 2019/771, incorpora a solução nesta prevista, que prevê uma submissão dos direitos, em caso de não conformidade dos bens, a diferentes patamares de precedência.

São eles:  direito de reparação ou substituição do bem, redução do preço ou resolução do contrato.

Assim sendo, terá o consumidor direito à “reposição da conformidade”, através da reparação ou da substituição do bem, à redução do preço e à resolução do contrato, estabelecendo-se as condições e requisitos aplicáveis para cada um destes meios.

Houve, então, lugar a uma possibilidade de o consumidor optar diretamente entre a substituição do bem e a resolução do contrato, quando esteja em causa uma falta de conformidade manifestada nos primeiros 30 dias desde a entrega do bem.

Eliminou-se, igualmente, a obrigação que sobre o consumidor pendia de denunciar o defeito dentro de determinado prazo após o seu conhecimento, reestabelecendo-se a inexistência de obstáculos ao exercício de direitos de que este dispõe durante o prazo de garantia de bens.

Por outro lado, foram também delimitadas obrigações a cargo do profissional, quanto ao prazo de reparação, à recolha e remoção dos bens para reparação e à devolução do preço pago em caso de resolução do contrato.

Relativamente aos bens imóveis, é especialmente de notar que, perante falta de conformidade dos mesmos, alargou-se, com o presente diploma, o prazo de garantia dos mesmos a respeito de faltas de conformidade relativas a elementos construtivos estruturais para 10 anos, mantendo-se o atual prazo de 5 anos quanto às restantes faltas de conformidade.

Passando para a questão do fornecimento de conteúdos ou serviços digitais, também quanto a este tipo de contratos se determinam requisitos subjetivos e objetivos a estarem cumpridos para efeitos de conformidade, sendo que o ónus da prova nos conteúdos e serviços digitais incumbe ao profissional, que tem uma obrigação de os fornecer sem demora injustificada.

Em caso de não fornecimento nessas condições, o consumidor pode solicitar ao profissional o seu fornecimento e, se este, tendo sido interpelado ao cumprimento, ainda assim não fornecer os conteúdos, terá o consumidor direito à resolução do contrato.

Já perante uma falta de conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, o consumidor terá direito:

  • (i) à reposição da conformidade– salvo se tal for impossível ou impuser ao profissional custos desproporcionados;
  • (ii) à redução proporcional do preço; ou
  •  (iii) à resolução do contrato.

Em concreto, havendo lugar à resolução do contrato, impendem obrigações quer sobre o profissional, quer sobre o próprio consumidor.

Quanto ao profissional, este deverá reembolsar o consumidor de todos os montantes pagos e, estipulando o contrato o fornecimento continuo, ou de uma série de atos individuais de fornecimento, e os conteúdos ou serviços digitais tiverem estado em conformidade durante um período anterior à resolução do contrato, esse reembolso será calculado proporcionalmente.

O mencionado reembolso é efetuado pelo meio de pagamento utilizado pelo consumidor na transação inicial (salvo acordo expresso em contrário), e deve ser efetuado sem demora indevida, sempre num prazo de 14 dias a contar da data em que o profissional foi informado da decisão do consumidor de reduzir o preço ou resolver o contrato.

Por sua vez, após a resolução do contrato, o consumidor dever-se-á abster de utilizar os conteúdos ou serviços digitais e de os colocar à disposição de terceiros e, sempre que o fornecimento tenha ocorrido num suporte material, o consumidor deve, a pedido do profissional, devolvê-lo, sem demora injustificada, ao profissional. O prazo para que tal pedido seja efetuado é de 14 dias a contar da data em que o mesmo tenha sido informado do exercício, pelo consumidor, do direito de resolução do contrato.

Chegando às disposições comuns, há que fazer menção ao direito de regresso de que dispõe o profissional. Assim, durante cinco anos a contar da entrega do bem pelo demandado, poderá o profissional agir contra a pessoa ou pessoas responsáveis na cadeia contratual, podendo tal direito ser exercido na ação judicial intentada pelo consumidor.  

Surge-nos, neste âmbito, o prestador de mercado em linha, que se afigura como um parceiro contratual do profissional que disponibiliza o bem, conteúdo ou serviço digital, e que com este é solidariamente responsável, perante o consumidor, pela falta de conformidades daqueles.

Existindo um prestador de mercado que não seja parceiro contratual do profissional, este deverá, antes da celebração do contrato, informar os consumidores, inequivocamente, de que o contrato será celebrado com um profissional, e não com o prestador de mercado em linha.

Finalmente, o Capítulo IV do decreto-lei que ora nos importa, dedica a Secção III à questão da fiscalização, contraordenações e sanções, determinando que, regra geral, compete à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) a fiscalização do cumprimento do disposto no diploma, e a instrução dos respetivos processos de contraordenação, sendo que a decisão de aplicação das coimas e sanções acessórias compete ao inspetor-geral da ASAE.

A única exceção a tal regra passa pela competência do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, I.P., que fiscaliza e instrui os processos por contraordenação, quando esteja em causa reparação ou substituição de um bem imóvel por falta de conformidade. 

Para além do reforço dos direitos do consumidor através das novas disposições e do regime de contraordenações previsto, o legislador veio ainda salvaguardar a posição do Consumidor através de um regime de imperatividade, clarificando que é nulo qualquer acordo ou cláusula contratual que vise limitar ou excluir os direitos do consumidor previstos.

Inês Maltêz da Cunha
Inês Gomes Pereira
Advogada-Estagiária

A TFRA atualizará a informação deste documento sempre que se justificar.

A informação constante deste documento é de carácter genérico não dispensando a análise do caso concreto, nem a consulta da documentação oficial e legislação em vigor a cada momento.

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